terça-feira, 18 de maio de 2010

O QUE É REAL?


Tudo era dor,dor e medo.Ela se esgueirava pelos corredores escuros do que um dia fora sua casa; ela evitava olhar as paredes manchadas de sangue e pisar nos pedaços de pele espalhados pelo chão.Todos estavam mortos, sim, mortos,mutilados e com seus pedaços espalhados na casa inteira ou, ainda pior, na barriga de algum morto-vivo.Chegando ao seu antigo quarto, não pode evitar as lágrimas ao ver o bercinho ensangüentado. Ela se deixou cair no chão, chorou por um longo tempo. Os arranhões em seu corpo ardiam, ela sentia um estranho gelar nas veias.Fraca e enjoada, ela se arrastou até a cama imunda e se encolheu dormindo.

Acordou com o ruído das criaturas subindo a escada. Não estava mais com medo, estava com ódio.Sua mão tocou a barra de ferro debaixo da cama, seus olhos felinos brilharam no escuro e seus pés mal tocaram o chão antes que ela acertasse o primeiro morto-vivo. Na cabeça,destruindo-o. O segundo levou a barra no pescoço,foi decapitado; o terceiro sentiu a barra atravessar seu peito e logo depois a cabeça.Ela apenas deixava o sangue espirrar,nada mais importava,tudo que amava estava destruído. Mesmo depois que nenhum deles se mexia, ela continuava batendo e batendo.Quando a raiva passou, ela sorriu,bateu a barra de leve numa das mãos dizendo:

- Mais...Mais... Quando percebeu estava na rua,batendo em todos que via pela frente, ela queria apenas bater,bater e matar.Nem percebeu que seu corpo se modificava, cada vez mais frio, cada vez mais morto, enquanto o sorriso louco tomava conta de seu rosto permanentemente e uma única palavra saía de sua boca.

- Mais...Mais...

O QUE É REAL?

BEIJOS GELADOS


Seus olhos brilharam quando ela viu aquele corpo. Com as pontas dos dedos, ela podia sentir a temperatura e a maciez daquela pele branca totalmente despida. Camille também se despiu e começou a alisar o peito, os braços, as pernas, sentir cada músculo. Seu corpo tremia de prazer. Com os lábios, sentia o sabor... Era algo inexplicável. O prazer só dependia dela. Apreciava beijar aqueles lábios frios, lambê-los... Fazia suaves movimentos circulares com a língua. Subiu em cima dele e simulou uma penetração impossível.

Enquanto se esfregava e gemia de prazer, olhava para o amigo que a assistia no canto da sala, sentado em uma cadeira. Enquanto fazia isso, tocava suas partes intimas, excitando-as. Marcos adorava ver aquilo. No entanto, já era tarde. Sussurrando para não ser ouvido, pediu para que ela terminasse, pois os familiares já estavam na sala ao lado, esperando o ente querido. Ele precisava terminar os preparativos, maquiar e vestir o falecido. A garota deu-lhe um beijo de agradecimento por mais uma noite de prazer e se foi.

Camille e seu amigo agente funerário se conheciam há muito, desde os tempos de colégio. Em certa época da vida, descobriram o mesmo gosto pela morte. Isso se deu quando ela, curiosa, quis visitar o local de trabalho do amigo. Ao avistar o corpo másculo de um rapaz, excitou-se. A partir dali, convenceu o amigo a liberar sua entrada no necrotério municipal para suas pequenas orgias. No inicio, Marcos achou muito estranho, mas, levando em conta o corpo dela, moldado em academias, cedeu, participando algumas vezes da festa. Geralmente, esses eventos aconteciam à noite. Durante o dia, a garota estudava em sua casa.

Assim que um corpo de homem que, aos olhos dele, agradaria Camille, dava entrada no necrotério, o amigo ligava para ela; naquela noite não seria diferente...

- Oi – beijou-o – E meu falecido. Quem é?

Ele sorriu.

- Você vai gostar. – descobriu o lençol branco. O nome dele é Roberto, tinha 23 anos e morreu em um acidente de moto, mas não ficaram muitas marcas.

Ela o examinou e abriu um largo sorriso.

- Hummm, ele parece ser bom. – tocou-o – Eu estava precisando me distrair mesmo... Tava de saco cheio de ficar em casa!

- Mas temos que ser rápidos. A família já está na sala ao lado, esperando para o velório.

Ela assentiu com a cabeça. Esses riscos a excitavam. Adorava ser pressionada.

- Vou deixar vocês a sós por um tempinho, enquanto preparo a roupa e a maquiagem. – virou-se para o corpo – Seja um bom garoto, Roberto! Faça tudo o que ela mandar... – disse, saindo.

Camille aproximou-se do ouvido do falecido e sussurrou:

- Agora somos só eu e você, Beto!

Passou dois dedos nos lábios do falecido e levou-os aos seus, isso um pouco antes de tirar a sua blusa e deitar sobre o corpo frio à sua frente. Em seguida, colocou a língua para fora e lambeu a boca dele, sentindo o gosto cru da morte, além de seu cheiro acre. Para ela, amar um morto, mesmo que por alguns minutos, era algo mágico, diferente, um ritual com muita energia. Não era apenas sexo. Marcos também gostava, mas em uma escala menor. Sempre que entrava um cadáver de mulher que o agradava ele passava a mão e se acariciava também.

Camille estava muito excitada e passou a se masturbar, gemendo baixinho, enquanto aumentava o ritmo em que conduzia a mão do cadáver. De súbito, Marcos retornou a sala, deslumbrando a cena. Ficou ali, encostado na porta, olhando-a . Com os olhos entreabertos, ela ensaiou dizer um “vem” com os lábios. Contudo, o som não saiu. O amigo entendeu e aproximou-se. Os dois se beijaram e amaram-se por longos minutos. Seria quase um ménage se Roberto pudesse agir.

Saciados, vestiram-se e prepararam Roberto para o velório. Ela, de tanto acompanhar o amigo nas madrugadas na funerária, já havia adquirido experiência em maquiar e vestir os mortos.

- Pronto! Está lindo, arrumado e cheiroso... Se pudesse ficaria horas com ele. – disse, enquanto acendia seu cigarro.

- Quando o presunto é boa pinta, fica mais fácil, né? – respondeu Marcos – Estou uns quinze minutos atrasado. Vou pedir para os rapazes me ajudarem com o caixão. – beijou-a.

- Valeu! – sorriu – Quando tiver umas carnes gostosas assim, não deixe de me ligar. – deu uma leve piscada e saiu.

Camille saiu pela porta dos fundos, como de costume, e foi andando lentamente, passando por trás das salas de velório. Enquanto caminhava, observava a lua minguante no céu, cercada de estrelas. Adorava o cheiro suave da noite. Nela, todos os seus prazeres eram consumados. Contudo, por conta dessa observação, deixou de prestar atenção por onde andava, razão pela qual tropeçou em um pedaço de lápide cravado na terra. A conseqüência disso foi uma queda que fez sua cabeça ir de encontro a uma pedra tumular. Ficou alguns segundos atordoada. Ao se levantar, passou a mão na testa e notou que havia um pouco de sangue.

- Mas que merda! – resmungou.

Enquanto tirava terra da roupa, procurou onde tinha tropeçado e achou o resto da lápide. Havia uma inscrição. Ela se agachou e limpou a terra que escondia uma parte.

Maldito daquele que perturbar o descanso dos mortos.

Camille assustou-se. Achou de mau gosto alguém ter colocado aquilo em uma lápide, Parecia uma ameaça, uma maldição lançada.

- Uma maldição lançada para mim... – pensou em voz alta.

Estranhou a coincidência de ter tropeçado justamente em uma lápide com aqueles dizeres.

- Bobagem! Foi só uma merda de coincidência, eu não acredito nessas porcarias. – esbravejou, pulando o muro do cemitério.

Enquanto caminhava pela rua escura, sua cabeça doía muito e continuava a sangrar. Estava com medo. Pela primeira vez, Camille sentiu medo do que estava fazendo.

Maldito daquele...

Aquela inscrição não saía da cabeça dela.

Ela estava com medo. Ansiava por encontrar alguém, mas a rua estava deserta e escura. Mal podia ver o chão. Cruzou os braços e foi andando, trêmula. Repentinamente, tropeçou em suas próprias pernas e caiu novamente. Ficou alguns segundos no chão e começou a chorar.

- Você está bem?

Ela levantou a cabeça, antes de frente para o chão e só conseguiu visualizar um par de botas. A pessoa ajudou-a a se levantar e foi tirando-a do breu da madrugada. O pavor que subitamente tomou conta dela a impedia de pronunciar qualquer palavra, nem sequer um obrigado ao samaritano. Enquanto caminhavam, ele puxou papo.

- Qual é o seu nome?

- Camille!

- Você fuma? Pode me ceder um cigarro?

Ela tirou um do maço e entregou a ele.

- Pode acender para mim?

Ela pegou o isqueiro e, com as mãos tremendo, levou-o até o cigarro na boca dele. Ao acender, a chama iluminou o rosto do rapaz, e ela o reconheceu imeditamente.

- N-Não pode ser!

Ela se desesperou, empurrou-o tentando correr. Não podia acreditar que era ele. Correu muito até avistar a ponte. Olhou para trás e viu que não a seguia. Estava sem ar, não conseguia pensar em nada, só queria chegar em casa e esquecer essa terrível noite.

- Só eu e você! Agora somos só eu e você... Não foi isso que você me falou?

Era ele, agora tinha certeza, ela não conseguia correr, sentia que seu corpo já não respondia mais, caiu de joelhos.

- Não pode ser! Você está morto...! Me deixe em paz! – gritou.

Era sua maldição, maldita lápide, maldita maldição que caíra sobre ela.

Dias depois, Marcos ficou muito tenso quando chegou aquele corpo. Retirou o lençol que a cobria. Não podia acreditar que aquela fatalidade tinha acontecido. Ela estava morta. Havia dois dias, estava com ele. Fora encontrada morta naquela madrugada, resultado de um acidente banal: havia caído sobre uma pedra no cemitério. O laudo apontou uma concussão profunda no crânio. Para sorte dele, não descobriram que eles estavam juntos na funerária. Passou em sua cabeça tudo o que eles fizeram, desde quando se conheceram até a ultima noite. Lembrou das transas, de todos os mortos que saciaram seus desejos. Agora era ela, era a garota que ele amava, a pessoa que mais se parecia com ele. Tinha de ser a despedida era a última vez. O corpo de Camille o excitava, ela parecia estar dormindo. Marcos tirou a roupa e começou a tocar o corpo dela. Beijou seus lábios, seus seios e a penetrou. Ele tinha a sensação de que não estava sozinho. Estava certo. No canto da sala fria e úmida, Roberto e Camille observavam, com paciência.

A HISTÓRIA DO NECRONOMICON





Edição comemorativa a cargo de Wilson H. Shepherd, The Rebel Press, Oakman, Alabama.

O Título original era “Al-Azif”. Azif era o termo utilizado pelos árabes para designar o ruído noturno (produzido pelos insetos) que, suunha-se, era o murmúrio dos demônios. Escrito por Abdul Al Hazred, um poeta louco de Sana, fugido no Iêmen, na época dos califas Olmeias, pelo ano de 700. Visita as ruínas da Babilônia, e os subterrâneos secretos de Mênfis, e passa dez anos sozinho no grande deserto que se estende ao sul da Arábia, o Roba el-Khaliyeh, o “Espaço vital” dos antigos e o Dahna, “O deserto Rubro” dos árabes modernos. Afirma-se que este deserto é habitado por espíritos malignos e por monstros tenebrosos. Os que afirmam haver penetrado em suas regiões contam coisas estranhas e sobrenaturais. Durante os últimos anos de sua vida, Al Hazred viveu em Damasco, onde escreveu o “Necrononicon” (Al-Azif), por onde circulam terríveis e contraditórios boatos sobre a sua morte ou desaparecimento em 738. O seu biógrafo do Séc. XII, Ibn-Khalikan, conta que Al Hazred foi assassinado por um monstro invisível em pleno dia, sendo devorado na presença de um número expressivo de testemunhas aterrorizadas. Contam-se ainda muitas coisas acerca de sua loucura. Ele alegava ter visto a famosa Ilrem, a Cidade dos Pilaree, e ter encontrado, sob as ruínas de uma cidade perdida do deserto, oos anais secretos de uma raça mais antiga que a humanidade. Ele não participava da fé mulçumana, pois adorava umas desconhecidas entidades chamadas Yog-Sothoth y Cthulhu.

No ano de 950, o “Azif”, que havia circulado secretamente entre os filósofos da época, foi ocultamente traduzido pelo grego Theodorus Philetas, de Constantinopla, sob o título “Necronomicon”. Durante um século, e por arte de sua influência, ocorreram certos fatos terríveis, razão pela qual o livro foi proibido e queimado pelo patriarca Michael. Desde então, não temos mais que vagas referências ao livro, mas em 1228, Olaus Wormius encontrou uma tradução para o latim que foi impressa duas vezes, sendo uma no Séc. XV, em letras negras (com toda segurança na Alemanha) e outra no Séc. XVII (provavelmente na Espanha). Estas traduções não trazem qualquer esclarecimento, de tal forma que somente pela tipografia é que se supõe a data e o local de impressão. A obra, tanto em sua versão grega quanto na latina, foi proibida em 1232 pelo Papa Gregório IX, pouco depois que a tradução latina havia se convertido em um poderoso foco de atenção. A edição árabe original se perdeu na época de Wormius, conforme foi dito no prefácio (há vagas alusões sobre a existência de uma cópia secreta encontrada em São Francisco, no início do século, mas que desapareceu no grande incêndio). Não há rastro da versão grega, impressa na Itália, entre 1500 e 1550, depois do incêndio ocorrido na biblioteca de uma certa personagem de Salem, em 1692. Igualmente, existia uma tradução do doutor Dee, jamais impressa, baseada no manuscrito original. Os textos latinos ainda subsistem; um, (do Séc. XV) está guardado no Museu Britânico; outro (do Séc. XVII), se acha na Biblioteca Nacional de Paris. Uma edição do Séc. XVII encontra-se acautelada na biblioteca de Wiedener de Harvard e outra na Biblioteca da Universidade de Miskatonic, en Arkham; há mais uma na biblioteca da Universidade de Buenos Aires. É possível que existam outras cópias mantidas em segredo; há rumores persistentes de que uma cópia do Séc. XV foi parar na coleção de um célebre milionário americano. Outro rumor assegura que uma cópia do texto grego do Séc. XVI é propriedade da família Pickman de Salem, mas é quase certo que esta cópia desapareceu, ao mesmo tempo que o artista R. U. Pickman, em 1926. A obra está veementemente proibida pelas autoridades e por todas as organizações legais inglesas. Sua leitura pode atrair conseqüências nefastas. Acredita-se que R. W. Chambers se baseou neste livro em sua obra “O rei amarelo.”

O ÚLTIMO CAVALHEIRO DAS TREVAS


(Conto comemorativo ao primeiro aniversário da Irmandade das Sombras)

Richmond não acreditava na possibilidade de que o morto pudesse retornar mas Harmony fora enfático: Ele retornaria após a leitura correta do “Im Reich Der Farbtöne” (1).

Os dois estavam em uma das inúmeras salas escuras do castelo gótico do barão Von Sorian, na Moldávia. Ele havia sido o ultimo representante da Irmandade das Sombras e desaparecera misteriosamente no ano de 2057.

Agora Richmond e Harmony haviam localizado o local incrustado em meio às inóspitas e solitárias montanhas dos Cárpatos. Sem sombra de dúvidas aquele havia sido o lugar de reuniões do grupo de literatos mais perturbador de toda a história da literatura universal; produtores de obras que aterrorizaram o mundo e foram capazes de transformar o senso de horror a níveis globais. Houve muita perseguição à concepção artística da Irmandade; governos americanos e europeus tentaram a todo custo banir suas publicações mas o povo insistia em ler cada um dos novos trabalhos de seus membros. Foram os discursos públicos e campanhas publicitárias cada vez mais agressivas, promovidas pelos governos dos países mais conservadores, que fizeram com que o grupo buscasse o isolamento nas montanhas. Um local escondido dos olhos de todos onde eles poderiam buscar inspiração e concentração total. E foi então que seus temas e suas produções encontraram um nível jamais imaginado nos anais das concepções de arte sombria.

As publicações continuaram de forma clandestina, mas, ainda assim, chegando frequentemente ao alcance de seus leitores nas mais diversas línguas. E houve quem afirmasse, em lugares tão diversos do mundo quanto a África e a Suíça, que a leitura das obras dos escritores era prejudicial à saúde física e mental de quem lia.

Richmond e Harmony, a duras penas e depois de vinte anos, obtiveram autorização do governo local para explorarem as ruínas do velho castelo. Foi entre as inúmeras salas, e em meio a extensas e mofadas estantes de livros, que eles encontraram a passagem para a sala secreta da Irmandade, conhecida como “A câmara dos Tormentos”; porém, daquele lugar escuro e úmido saíram durante o tempo em que os escritores ali permaneceram apenas os mais puros deleites sombrios que um leitor jamais sonhou em desfrutar. Não causavam tormentos ao corpo como queriam crer os puritanos do mundo. E na mente, o único mal que originaram talvez tenha sido a libertação dos afetados deste mundo apenas material oferecendo-lhes mergulhos profundos em vastos e encantados mundos etéreos.


O que Richmond e Harmony queriam era encontrar o lendário corpo insepulto do ultimo representante do movimento. Os outros, todos eles, havia sido descobertos em ruínas abandonadas ao redor do mundo sempre mutilados de forma bastante sistemática. Os dois pesquisadores do insólito encontravam razões para crer que as partes extraídas dos cadáveres estariam naquele local, junto ao corpo do barão Von Sorian. Estes motivos eles cooptavam das leituras e da interpretação da obra máxima da Irmandade, o terrível livro escrito em conjunto por todo o grupo, “Im Reich Der Farbtöne”. Segundo o compêndio, seria possível através da execução de determinados rituais, manter eternamente acesa a chama da imaginação obscura do grupo. Mas, lendo atentamente, e de posse das traduções dos trechos escritos em aramaico, se poderia encontrar “um livro dentro do livro” e este era muito mais terrível. Harmony o lera, e seus cabelos haviam embranquecido do dia para a noite. Para Richmond, sempre menos curioso que o amigo, aquela era a suma confirmação de que o material era sim danoso ao corpo e a alma; todavia, como fã incondicional da obra da Irmandade, nunca se opôs em seguir o outro em sua empreitada.

Os rastros do barão haviam sido seguidos desde sua fonte original, no nordeste brasileiro, sendo elaborada uma detalhada reconstituição de sua trajetória entre a cidade de Salvador e as montanhas dos Cárpatos. Ele adquirira o castelo através do investimento de recursos próprios, muito provavelmente originários de espólios de família. Depois agrupara os irmãos em Londres e de lá partiram para sua ultima morada terrestre.

Depois disso, não se sabe como, seus livros de contos, romances e novelas terríficas apareciam nas bancas e livrarias sempre sem que nenhum funcionário desse conta de sua encomenda e compra. Depois que as atividades cessaram, e os primeiros corpos mutilados foram surgindo, o ultimo livro apareceu numa biblioteca de Amsterdam. Foi lá que Peer Harmony o viu pela primeira vez. Nele descobriu, lendo as entrelinhas, um plano sinistro. Sua casa, nos subúrbios, era repleta de livros de terror e ocultismo. Juntando informações de inúmeras fontes ele entendeu o propósito da obra e assumiu para si a missão implícita ao descobridor. Foi apenas um dia antes de chamar a sua casa o amigo Albertus Richmond que ele terminou a tradução da ultima parte do rito principal. Era uma cerimônia de ressurreição. E dizia que seria dado o poder de dar continuidade à obra da Irmandade das Sombras àquele que, encontrando o cadáver do ultimo cavaleiro das trevas, o reerguesse da morte. As páginas finais do grimório continham todo o planejamento e prática da missa a ser realizada.

No dia 06/06/2076, dezenove anos depois do desaparecimento da Irmandade das sombras, Richmond e Harmony estavam no interior do castelo abandonado para trazê-la de volta.

Não havia o que questionar: O corpo encarquilhado e escuro que jazia em uma pedra de frio mármore negro era de fato o do barão Von Sorian; porém, ele não era de forma nenhuma apenas isso. Seus membros não eram apenas aqueles com os quais havia nascido; estavam misturados, com costuras grossas e malfeitas, aos pedaços retirados dos cadáveres dos outros irmãos das sombras. Suas pernas não eram apenas suas pernas; eram também as de Lord Linx e Lord Henry. Seus olhos não eram apenas os seus olhos, mas sim também os de Lady Celly e Lady Hell. Todo o seu corpo era um imenso retalho, tal qual um Frankenstein medonho, que agregava as partes de todos os outros membros. Viam-se aqui partes das mãos de Lord Roger Silver misturadas com as unhas de Sir Luciano Barreto e os dedos de Lady Mauren Müller; ali, a pele de Lady Catherine costurada aos cabelos de Sir Luiz Poleto e Dom Alexandre Nunes. Via-se na abominação híbrida, um rosto magnânimo: Metade era o do próprio Barão; a outra metade era a da condessa Victoria Magna.

A visão estarrecedora derrubou o livro das mãos de Richmond à primeira vez que ele a avistara de sob a cortina de poeira que se erguera quando a passagem por trás da estante fora aberta. Depois, como ocorre com um odor nefando, ele acostumou-se e não mais sentiu os nervos abalados. Ou curara-se ou não tinha mais nervos. De qualquer forma tinha que se controlar; os planos de Harmony iam muito mais além.

Foi numa sexta-feira que o ritual foi realizado. Uma descrição detalhada de todo o ocorrido seria deveras traumática para o leitor. Opto por partir do ponto em que tudo se tornou tão palpável quanto as pedras das paredes bolorentas do castelo Von Sorian. Tudo o que era necessário à manobra mágica se encontrava na própria câmara secreta. Os autores haviam cuidado de tudo!

Às seis da tarde, quando o sol escoava seus últimos raios avermelhados por entre os picos cobertos por neves eternas dos Cárpatos, Richmond e Harmony iniciaram a missa da ressurreição. Após a consagração dos pontos cardeais aos espíritos da terra, depois que os signos mágicos haviam sido traçados, leu-se a conjuração principal:


“Per Adonai Eloim, Adonai Jeovah!

Adonai Sabbaoth, Metrathon ou Aglamethon!

Verbum Pythonicum, mysterlum salamandrae,Cenventus sylvorum, antra gnomorum, daemonia coelli.

Almosin, Gibor,Jehosua, Evam, Zariathnatmik!

Veni, Veni, Veni

Ego te provoco!

Ego te provoco!

In domine meum!

Veni, Veni, Veni!” (2)


Primeiro foram as velas que se apagaram sem que houvesse vento algum, depois as dobradiças das portas estalaram sem que ninguém as manipulasse. Os livros das estantes, então, saltaram de seus lugares e, espalhados no chão, se abriam e fechavam sozinhos. Lá fora, a noite provinha o ar de sons lamentosos; de gemidos de um quase prazer bestial. Eram como o frenesi de uma multidão cujas vozes se espalhavam pelas florestas e montanhas geladas.

No interior da Câmara dos Tormentos, Richmond e Harmony presenciaram o ressurgir do mito. O nascimento de uma nova era livre. De súbito, a coisa em cima da pedra negra abriu os olhos. E seu corpo foi percorrido por violentos espasmos. No ambiente espalhou-se um forte odor de raiz de mandrágora em meio a densa fumaça azul esverdeada e ouviu-se o som de ossos se partindo quando o ressurrecto tentou se erguer. E ele, o último cavalheiro das trevas, olhando no fundo das almas de seus renovadores, falou, e sua voz era a de todos os irmãos juntos:

“Tu lestes bem nossos ensinamentos!” E enquanto falava se dirigia a Harmony. Depois, encarando com seu rosto retorcido a massa trêmula em que se tornara Albertus Richmond, disse: “Tu, não temas! Não há razão para os teus temores!”.


E continuou:

“Temo eu, pois esta algazarra que vem lá de fora me perturba deveras. O que são, pois, estes gritos, estes risos, estas exclamações?”

Neste momento o pior medo, o horror mais desmesurado, se apossou do coração de Richmond. Não havia meios de prever a reação do ressurrecto à segunda parte do trabalho de Harmony. O que fizeram era para toda a humanidade, mas não se poderia saber se a coisa iria aprovar. Assim, a única ação cabível aos dois mortais mais completamente tomados pelo poder da literatura das sombras, era abrir de uma vez a enorme janela que dava para a paisagem fria do lado de fora.

Num pulo, correram a destrancar e retirar as travas que haviam mantido no escuro aquele quarto por mais de vinte anos. Em menos de trinta segundos as duas partes pesadas do janelão se abriram deixando entrar uma rajada de vento frio que espanou para o ar toda a poeira de muitos e muitos anos. Junto com o vento o som dos gritos de êxtase invadiu os cantos do velho castelo e a coisa que era toda a Irmandade das Sombras levantou-se de seu leito de mármore. Seus velhos ossos estalavam depois de décadas de inércia.

E os sons continuaram pela noite. Repercutindo pelos vales e bosques ao luar. Era um som portentoso, nítido, próximo. Quando o ressurecto alcançou a sacada, a visão que teve o encheu do mais puro e indescritível deleite. Lá, cobrindo toda a extensão visível da terra, mergulhando em direção ao horizonte escuro como um enxame pululante interminável, estavam milhões de pessoas. E elas traziam consigo artefatos luminosos que brilhavam na escuridão.

A coisa que era a Irmandade virou-se para Richmond e Harmony mas não precisou falar.


“Eis aí, mestre! Teus fãs de todo o mundo que vieram celebrar este vosso renascimento. Eu mesmo, e meu amigo, chamamos e convencemos cada um deles a estar aqui nesta noite. Eles são milhões, e o início do teu reino!” Disse Harmony e seus olhos estavam cheios de lágrimas.

“Vê Mestre!” Disse Richmond vencendo o medo em face da emoção. “Cada um trás papel e caneta. Eles querem ouvir o início da nova estória! Fala a eles!”

Então a Irmandade das Sombras avançou mais para fora da janela até um ponto em que já quase se debruçava para o ar. E do umbral ouviu e viu a maior ovação que as forças do mundo já testemunharam. Com um sorriso no rosto ergueu os braços e, depois que a multidão fez silêncio, começou a escrita de uma nova era.



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(1) - “Im Reich Der Farbtöne” = No Reino Das Sombras (N. do A.)

(2) - Ritual de invocação retirado do livro "O caso de Charles Dexter Ward" de Howard Phillips Lovecraft que por sua vez o adaptou ao seu conto extraindo-o da obra "Dogma e ritual da alta magia" do ocultista francês Elifas Levi. (N. do A.)

FIM

O QUADRO DO PALHAÇO


Festa de aniversário na casa de André, ele estava completando 8 anos, entre os vários presentes, um recebeu atenção especial, um quadro com a gravura de um palhaço, ele usava um chapéu amassado com uma flor morta e tinha uma fisionomia triste.

André não tinha mais tranqüilidade para brincar no seu quarto, se sentia vigiado pelo estranho quadro pendurado na cabeceira da cama. Ele tinha a impressão que o palhaço se mexia enquanto ele brincava.

O pior era quando anoitecia, na hora de dormir ele ouvia estranhos ruídos que pareciam vir do quadro, levantava, ligava a luz e lá estava o palhaço com o semblante triste, mas ao mesmo tempo um sorriso cínico. O medo era tão grande que um dia ele teve um terrível pesadelo com o palhaço, acordou no meio da noite, e foi correndo para o quarto da sua mãe.

Acordou disposto a dar fim naquele medo, pegou o quadro colocou no chão e ficou observando aquela gravura, era como se o palhaço tivesse vida. André pegou uma faca e começou a raspar os olhos do temível palhaço, sem os olhos ele não parecia tão terrível assim. Quando sua mãe chegou e viu o que ele tinha feito com o quadro ficou muito nervosa, lhe deu uma surra, e o pior, deixou André de castigo trancado no quarto.

Ele não sabia o que fazer, ele sentia a presença do palhaço no quarto, se apagava a luz ficava vendo coisas, se acendia lá estava a gravura, agora sem olhos e com um ar de vingança. Pegou o quadro e colocou embaixo da cama, deitou e pensou que tinha achado uma boa solução, mas começou a ouvir uma risada, bem baixinha, como se estivesse provocando.

- Lá, lá, lá lá lá. Não estou ouvindo nada! – começou a cantar com as mãos tampando os ouvidos.

André sentiu um forte puxão em seus braços.

- Agora você vai ouvir!!! - disse o palhaço em cima de sua cama, o garoto não podia acreditar que o palhaço estava na sua frente, não era uma gravura, era real, seu rosto era sombrio, sua maquiagem estava desbotada, usava uma roupa rasgada, fétida, era como um circo de horrorres.
- Me larga, seu palhaço horroroso... Me larga!!! – gritou André se debatendo.


O palhaço continuou a segurá-lo com muita força, e dava gargalhadas, de seus olhos escorriam um líquido negro, o palhaço ergueu a mão e enfiou com toda força no peito de André. Ele sentiu o amargo sabor da morte em seus lábios, não podia se entregar, não podia deixar sua vida escapar, de repente um clarão, e uma forte sacudida em seus ombros.

- Acorda, filho! Acorda! Calma... Foi apenas um pesadelo." – disse sua mãe.

A mãe de André deixou ele dormir no quarto dela. Mas ele sabia que seria só naquela noite, e teria que enfrentar o quadro novamente.

Na escola, ao contar o que aconteceu, seus amigos lhe deram a idéia de queimar o quadro.

Com um saco de lixo eles entraram no quarto sem que a empregada percebesse, pegaram o quadro e botaram dentro do saco.

- Onde vamos queimar? – perguntou André aos seus colegas.
- Na minha garagem! Vamos botar fogo nesse palhaço! – respondeu Fernando.

Jogaram muito álcool, pularam em cima do quadro, chutaram a gravura do palhaço, cuspiram em cima dele, um verdadeiro exorcismo.

-Taca fogo, André! Queima ele!" – gritou Fernando

André riscou o fósforo e jogou em cima do quadro. As labaredas consumiram o quadro, a gravura se desmanchou até não restar mais nada. Todos comemoraram. Menos a mãe de André que ficou revoltada ao saber que o garoto tinha destruído o quadro que seu avô lhe dera.

Era festa de aniversário de Fernando, já tinha passado alguns meses após o acontecido, todos os amigos reunidos inclusive André, muitos presentes chegaram, carrinho de controle remoto, vídeo game, bola, mas faltava desembrulhar um presente, ninguém sabia quem tinha dado aquele, estava encostado na parede, embrulhado com um papel marrom.

- Oba! Vamos ver o que é esse! - gritou Fernando chamando os colegas. -Acho que é um jogo! – disse André. - Não! Eu acho que é um quebra-cabeça!

E ao desembrulhar a terrível surpresa...

- O quadro do palhaço!!!!
FIM

A “EXCEPTIO NON ADIMPLETI CONTRACTUS”


As primeiras gotas de chuva começaram a cair. O vento gélido as fazia açoitar o corpo de César, que encolheu-se dentro do casaco e olhou em volta, procurando um abrigo. Havia um bar aberto a alguns metros de onde ele estava, na mesma calçada. Apressou o passo e entrou no lugar. Sentou-se diante de uma mesa, amaldiçoando mentalmente o tempo, o inverno e a falta de dinheiro que não lhe permitia tomar um táxi. Uma garçonete jovem e feia veio atendê-lo, visivelmente de má vontade. César pediu uma garrafa de vinho tinto seco e, enquanto a moça foi buscá-lo, pensou se teria dinheiro suficiente na carteira para pagar a bebida e, depois, o ônibus que o levaria para o subúrbio onde morava.

Enquanto bebericava o vinho, o jovem pensava em sua vida. César era advogado. Tinha trinta e dois anos. Interrompera os estudos durante muito tempo, mas, finalmente, conseguira se formar, e passara no teste da OAB. Porém, trabalhava num escritório de advocacia onde o tratavam praticamente como um office boy – pagavam-lhe um salário mínimo e o mandavam levar petições ao Fórum, carregar processos, comprar material de escritório, fazer cobranças dos clientes, atender o telefone. E sabia que só conseguira aquele emprego porque sua mãe era prima da esposa do chefe – o que não lhe garantiria a vaga por muito tempo, mas, pelo menos, ajudava-o a manter-se em Porto Alegre, embora fosse só pelo fato de que sua jovem esposa também trabalhava que ele pudesse sonhar com alguma coisa melhor, alguma especialização, algum curso que lhe permitisse se arriscar a pegar alguns casos, ficar conhecido, advogar de verdade.

Mas o tempo passara. O verão se fora. O outono correra como um corisco, e agora o frio do inverno fazia com que até seus ossos congelassem, quando se abrigava no quartinho frio e úmido que alugava, deitava-se na cama de solteiro que tinha de dividir com a esposa, porque não cabia uma cama de casal naquela pecinha, e esperava que as ilusões do sono lhe devolvessem alguma fé num futuro de sucesso que lhe parecia cada vez mais improvável...

De repente, César percebeu que um vulto parara à sua frente. Levantou os olhos e assustou-se com o homem que viu. Embora a luz do bar realmente não fosse boa, pôde perceber que o sujeito à sua frente era extremamente pálido – parecia que não corria sangue naquelas veias azuladas que podia enxergar através da pele pardacenta do desconhecido. Tinha um nariz adunco e olhos penetrantes, que lhe pareceu que brilhavam como os de um gato no escuro. Estava ensaiando um sorriso, e César pode divisar-lhe os dentes amarelados, os incisivos tortos para dentro, os caninos assustadoramente pontiagudos. O homem vestia um sobretudo negro, com a gola levantada. Era alto e magro, e havia rugas profundas em torno de seus olhos e de sua boca.

– Com licença – disse o estranho. – Posso me sentar com o senhor?

César sentiu-se desconfortável com aquela presença, mas não quis ser indelicado.

– Claro – disse. – Fique à vontade.

O homem puxou uma cadeira e sentou-se à mesa, diante dele.

– Eu reparei que o senhor estava bebendo sozinho – disse o desconhecido. – Dizem que “não presta” beber sozinho.

César riu.

– É verdade, dizem. Minha avó, que Deus a tenha, sempre me dizia que, quem bebe sozinho, bebe com o diabo.

O estranho deu uma risadinha.

– Sua avó devia ser mesmo uma mulher muito sábia – comentou.

César sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha.

– Mas conte-me – disse o jovem, franzindo a testa –, e o senhor, o que faz na rua numa noite horrorosa como esta?

– Eu sou negociante – respondeu o homem. – Na minha atividade, não se pode deixar de trabalhar debaixo de mau tempo. Posso perder um negócio valioso se deixar que a chuva ou o frio me impeçam de sair. Já quanto ao senhor, como é assalariado, não tem escolha, mesmo, não é?

– Pois é. – César tomou um gole de vinho. – Mas eu já ia pegar o ônibus para ir para casa, quando começou a chover e resolvi entrar aqui para ver se estiava um pouco...

O estranho cravou os olhos nos do jovem, de uma maneira que lhe pareceu que penetrava em sua alma.

– O senhor teria pegado o ônibus anterior, se o advogado para quem trabalha não lhe houvesse mandado digitar mais uma petição e o senhor tivesse saído do escritório na hora certa.

César estremeceu.

– Como o senhor sabe disso?

– Ah, eu o venho observando há bastante tempo, Sr. César. Tenho visto o quanto se esforçou para se tornar bacharel em Direito. Sei que o senhor tem bastante potencial. Suas notas foram ótimas na faculdade, apesar de todo o tempo que ficou sem estudar por causa das dificuldades econômicas de sua família. Sei que o senhor tem habilidade com as palavras, tem bom conhecimento das leis, sabe argumentar, enfim, sei que o senhor tem tudo para ser um ótimo advogado, rico e bem sucedido. Mas seu chefe não lhe dá uma oportunidade de mostrar o seu talento. Ele prefere explorá-lo, não é mesmo, Sr. César?

Àquela altura, César sentia o coração aos pulos e parecia que o ar lhe faltava.

– Como sabe meu nome? perguntou, num fio de voz.

O estranho olhou em volta. A garçonete estava distraída assistindo a novela das sete numa pequena televisão, e não havia nenhuma outra pessoa no lugar.

– Sr. César, eu vim lhe propor um negócio – disse.

César engoliu em seco.

– Que espécie de negócio?

– Ora, vamos, Sr. César. O senhor é um homem inteligente. Já sabe quem eu sou, e já sabe o que quero lhe oferecer.

– E também já sei em troca de quê – respondeu o jovem, sentindo-se gelar de medo.

O outro riu.

– Sr. César, há poucos minutos o senhor nem acreditava em mim. Muito menos no inferno. Nunca teve medo disso. Sempre achou que a morte fosse o fim de tudo. Se eu desaparecer, o senhor sabe que não vai correndo para uma igreja rezar um “Credo”. Não me diga que, justamente agora, agora quando surgiu a oportunidade de sua vida, vai se tornar religioso e passar a se preocupar com coisas que nunca acreditou que existissem.

O jovem encolheu-se um pouco e encarou o estranho:

– Ah, mas acontece que eu sei de muita gente que fez um pacto com o... Bem, que fez um pacto, e pagou tudo o que devia nesta vida aqui, mesmo. Ou então pagou com a própria vida. Por exemplo, sei de uma pessoa que até ficou rica, mas morreu de câncer três meses depois do acordo. Sei de uma mulher que conquistou o homem que amava há anos, mas daí a uma semana ele morreu, vítima de uma bala perdida. E sei de um cantor famoso que ficou paraplégico num acidente de carro que...

– Sr. César – interrompeu a figura sinistra –, o senhor é advogado. O senhor sabe quais são as conseqüências de um contrato mal feito. – Inclinou-se na direção do jovem e disse, baixinho: – Todas essas pessoas fizeram um contrato muito mal elaborado, Sr. César. Nenhuma delas incluiu qualquer cláusula que as protegesse. Além do mais, o Direito Civil brasileiro não incide naturalmente sobre esse tipo de contrato metafísico. Isso tem de ser estipulado pelas partes contratantes. Mas o senhor é advogado, Sr. César, e dos bons. Tenho certeza de que será capaz de pensar num contrato tão bem feito que é até mesmo possível que o senhor consiga me passar para trás.

César franziu a testa e ensaiou um sorriso. De repente, sentia uma certa auto-confiança crescer dentro de si.

– Bem – disse –, supondo que eu aceitasse a sua oferta, com certeza eu exigiria no mínimo mais uns cinqüenta anos de vida próspera, saudável e feliz.

O outro afastou o corpo do de seu interlocutor e o olhou de uma forma que denotava alguma espécie de contrariedade.

– Acontece que eu não posso prometer vida – disse. – Vida é algo que Ele dá, e Ele sempre poderá tirar na hora em que quiser.

– Então, nesse caso, não tem acordo comigo – respondeu César, decidido, já fazendo menção de levantar-se.

– Calma – interveio o outro. – Não posso prometer vida. Mas posso prometer proteção contra todas as formas de morte que o senhor conseguir imaginar.

– Como assim? perguntou César, sentindo-se vagamente interessado.

– Posso lhe prometer, por exemplo, que o senhor não será acometido por qualquer espécie de doença, seja causada por agentes internos ou externos. Posso lhe prometer que nenhum golpe ou artimanha de qualquer inimigo irá atingi-lo, seja usando revólver, arma branca, veneno, explosivo ou o que for. Também posso protegê-lo de ataques de animais. Posso protegê-lo do fogo, da água, das pedras, dos desabamentos, dos esmagamentos, em suma, posso cobri-lo de tantas garantias que com certeza o senhor vai viver, próspero, saudável e feliz, muito mais do que os cinqüenta anos que me pediu.

– Sei – disse César. – E qual é o truque?

– Não há truque – respondeu o sujeito. – Gosto de lidar com gente inteligente, gente que confia em sua própria capacidade. – Olhou-o em tom de desafio. – Vamos, melhore a minha proposta, Sr. César. Sei que é capaz de criar um acordo que lhe seja plenamente favorável em todos os sentidos.

– Então, quero que incidam as normas gerais das obrigações do Direito Civil Brasileiro, na forma em que eu as conheço – disse César, em tom irônico. – Especialmente a cláusula da exceptio non adimpleti contractus. A exceção de contrato não cumprido. Ou seja, se o senhor não cumprir com qualquer item do acordo, eu posso alegar isso em meu favor, e resguardo a minha alma.

– A exceptio non adimpleti contractus está expressamente admitida, Sr. César.

– Bem, além de todos os itens que o senhor já mencionou, acrescente proteção contra acidentes de carro, de barco e de avião.

– Bem lembrado, Sr. César.

– E estenda todos esses itens a todas as pessoas da minha família.

O outro fez uma careta.

– Todas as pessoas da sua família? O senhor está tentando vender a sua alma bem caro, Sr. César. Acha que ela vale tanto assim?

– Sem isso, não há acordo.

– Bem, vamos negociar. Seu pai já é falecido, e posso lhe garantir que não tenho a intenção de me meter com sua esposa, até porque sei que o senhor não a ama tanto assim. – Fez uma pausa. – Portanto, se eu estender minha proteção à sua mãe e aos filhos que o senhor vier a ter, está bom, não está?

– É, está razoável.

– Certo. Que mais?

– Um amplo apartamento de cobertura no bairro Bela Vista.

O camarada sorriu.

– Isso é fácil, Sr. César.

– Um BMW importado. Uma conta bancária bem gorda.

– O senhor está pedindo muito pouco.

– Em um mês.

O outro franziu a testa.

– Em um mês? Tudo isso? Bem, acho que dá.

– E quero que minha fortuna só aumente. Não quero que se passe um dia sequer em que eu tenha menos dinheiro do que na véspera.

– Serve mais patrimônio do que na véspera, Sr. César?

César sorriu. Estava gostando da conversa, especialmente quando o homem usava termos jurídicos. Sentia a confiança crescer dentro de si. A cada momento que passava, parecia-lhe que se convencia mais de sua inteligência, de sua capacidade, de sua habilidade em forjar um pacto no qual o próprio demônio fosse prejudicado.

– Serve – respondeu.

– Então, temos um acordo, Sr. César. Pacta sunt servanda.

– Os contratos têm de ser cumpridos – concordou o jovem.

O homem levantou-se e estendeu-lhe a mão. César também se levantou e apertou a mão magra, ossuda e acinzentada. Quando o cumprimentou, uma estranha sensação percorreu seu corpo, algo que ao mesmo tempo parecia congelá-lo e lhe produzir um choque elétrico, como se fosse uma anti-energia, como se o próprio frio da morte o estivesse atravessando naquele instante.

No dia seguinte, César nem se lembrava mais do encontro da véspera com o sujeito quando chegou no escritório. Assim que chegou, o chefe mandou chamá-lo à sua sala. César entrou, sentindo-se vagamente inquieto. O chefe estava com uma expressão estranha, parecia assustado com alguma coisa.

– César – disse ele –, preciso que tires fotocópias de todo esse processo – entregou-lhe os autos de um inventário em cinco volumes. – Agora mesmo.

– Sim, senhor.

– É muito importante. Vou ter de levar para casa. Sabes o Marco Aurélio?

– O Dr. Marco Aurélio, seu sócio?

– Sim. – O chefe o encarou, pálido. – Era o Marco Aurélio que estava tentando destrinchar esse inventário. Só que o Marco Aurélio faleceu ontem à noite, e agora eu não sei como vou desenrolar esse negócio.

César arregalou os olhos.

– O Dr. Marco Aurélio faleceu? Como?

– Teve um enfarte.

César estremeceu.

– A que horas foi isso? perguntou.

– Bem, a mulher dele disse que estava assistindo a novela das sete quando o ouviu gemer. Ela chamou a ambulância, mas, quando chegou no hospital, parece que ele já estava morto.

– Na hora da novela das sete... – murmurou César, sentindo-se arrepiar.

– Mas não percas tempo, César. Vai lá tirar o xerox agora mesmo, que eu tenho que devolver os autos ao Fórum e analisar esse raio desse inventário!

César obedeceu. Porém, enquanto o atendente da papelaria próxima ao escritório tirava as fotocópias, o jovem ia examinando as peças do processo. Realmente, era um inventário bastante complicado.

Mas, de repente, toda a solução dos entraves do processo, desde a partilha até o pagamento dos impostos, parecia surgir diante de seus olhos, como num passe de mágica...

César terminou de extrair as fotocópias, voltou ao escritório e sentou-se diante de um computador. Em minutos, elaborou uma petição em que resolvia todo aquele imbróglio, e apresentou-a ao chefe. O velho advogado leu o papel e olhou para o jovem, espantado.

– Como raios o Marco Aurélio não pensou nisso?... murmurou, enquanto assinava. – Bem, rapaz, não sei se vai dar certo, mas pelo menos o juiz vai ficar impressionado conosco!...

Nos dias que se sucederam, César percebeu que tudo parecia conspirar a seu favor. Não só aquele inventário foi solucionado como outros apareceram. O chefe não demorou a reconhecer-lhe a habilidade e a torná-lo seu sócio. Em poucos dias, foi preso um famoso traficante, em flagrante delito de homicídio, e chegou-lhe às mãos a oportunidade de impetrar o habeas corpus. César livrou o sujeito da cadeia e ele foi bastante generoso em recompensá-lo. Mas já se haviam passado vinte e sete dias, e ele ainda não tinha todo o dinheiro que pedira ao desconhecido.

Naquela noite, quando voltava para casa, resolveu comer um cachorro-quente e, quando ia jogar a embalagem numa lata de lixo, qual não foi a sua surpresa quando encontrou dentro dela uma maleta aparentemente nova. Pegou-a, levou-a para casa e a abriu. Estava cheia de dinheiro.

Estremeceu. Deu-se conta de que, provavelmente, tratava-se do preço de um resgate. Com certeza, alguém havia sido seqüestrado, encontrava-se em poder de criminosos, e a família fora orientada a deixar o dinheiro naquela maleta, naquela lata de lixo. Se não a devolvesse àquele lugar, ou se não procurasse a polícia para que armasse uma emboscada para os bandidos, a pessoa seqüestrada poderia ser morta... Mas contou o dinheiro e se surpreendeu. Com o que havia ganho nos inventários, com a recompensa do traficante e com o conteúdo daquela maleta, dava para comprar um apartamento de cobertura na Bela Vista, um BMW importado, e ainda sobraria aproximadamente duzentos mil de reais...

Quem censurava César a todo instante era sua esposa Alice. Era uma jovem bastante religiosa, e incomodava-a o fato de que boa parte da fortuna que o marido amealhara em tão pouco tempo tinha alguma coisa a ver com morte – a morte do advogado que houvera trabalhado no inventário, as mortes dos próprios inventariados, a morte que o traficante causara. E isso que ela não sabia nada sobre a maleta. César lhe mentira que havia ganho o dinheiro na loteria. Mas, três dias depois do achado, o jovem lera nos jornais uma notícia de um empresário que fora encontrado morto, com um tiro na cabeça, boiando no Guaíba, após ter permanecido vários dias em poder de seqüestradores, sendo que a família desesperada jurava que pagara o resgate, embora depois os bandidos houvessem feito contato e afirmado o contrário...

Ao mesmo tempo em que enriquecia, César tornava-se cada vez mais frio, com os empregados, com os servidores de cargos menos elevados do Fórum, com as pessoas pobres com que cruzava na rua, e inclusive com Alice. Esta, por sua vez, apegava-se cada vez mais à sua fé. César irritava-se em vê-la cada vez mais religiosa, cada vez mais cristã, cada vez mais próxima de Deus. Ela o convidava para orarem juntos. Ele recusava, mas sabia que a esposa o incluía em suas súplicas. Todos os dias, pela manhã, Alice se levantava, punha-se de joelhos ao lado da cama e dizia:

– Que o Sangue de Cristo nos cubra com seu poder e nos defenda de todo mal.

Aquela menção ao Sangue de Cristo parecia fazer com que seu próprio sangue fervesse em suas veias. Sua raiva se incendiava cada vez que ela dizia aquilo. Aos poucos, Alice foi-lhe parecendo cada vez mais feia, cada vez mais burra, cada vez menos adequada para ser a esposa do advogado de renome em que ele estava se tornando. Tinha vergonha de quando saía com ela e ela começava a falar em Jesus Cristo. Chegava a dizer-lhe que tinha ciúmes desse Deus que parecia ocupar a mente dela mais do que o próprio marido. Mas Alice tudo suportava com paciência, e isso o incomodava ainda mais.

Certa manhã, quando ela fez sua oração costumeira, César exclamou:

– Chega, mulher! Eu não quero saber de sangue nenhum em cima de mim!...

Alice o olhou, surpresa e indignada.

– Pois não parece – respondeu ela.

César levantou-se e a encarou.

– Como?

Alice baixou os olhos.

– César – disse, baixinho –, quanto sangue teve de ser derramado para que pudesses fazer fortuna?...

César chegou a levantar a mão para esbofeteá-la. Alice se encolheu. Então, César se lembrou que a lei estava mais severa para com maridos que batem nas esposas. Fez um gesto de impaciência.

– Vai fazer o meu café – disse. – E vê se pára de me incluir nessas tuas rezas! Eu não quero e não preciso desse tipo de proteção!...

A esposa vestiu um robe e foi até a cozinha. César ligou o chuveiro. Sentia-se exausto, já àquela hora da manhã. Impressionante como a simples menção ao nome de Cristo era capaz de irritá-lo, e como essa irritação era capaz de roubar-lhe as forças daquela maneira. Enquanto a água quente corria por seu corpo, pensou: “Eu tinha que ter me lembrado de acrescentar ao contrato um jeito de me livrar dessa infeliz.”

Mas nada o impedia de livrar-se ele mesmo do incômodo que sua mulher representava.

Passou o dia inteiro maquinando um plano. Sua esposa era uma mulher franzina, sempre fora meio adoentada. Não seria difícil de acreditarem que sofria do coração. Bastava que desse um jeito de matá-la sem levantar suspeitas e subornasse um médico que atestasse que a causa mortis fora enfarte. Alice não tinha pais vivos e seu único irmão estava morando há muitos anos em São Paulo. Ninguém iria desconfiar.

Um cliente seu, astuto criminoso, forneceu-lhe discretamente o veneno. César chegou em casa mais cedo. Como imaginava, Alice não estava em casa àquela hora. Provavelmente, tinha ido à Igreja. César foi até a geladeira. Havia uma jarra com um restinho de suco de limão. Sabia o quanto Alice gostava daquela bebida. Despejou na jarra todo o conteúdo do vidrinho que o bandido lhe fornecera. O sabor ácido da fruta disfarçaria o do veneno.

Foi para a sala que utilizava como seu escritório, deixou a porta aberta e ficou examinando alguns processos. Daí a pouco, ouviu Alice chegar. As horas foram-se passando, até que, finalmente, a esposa veio avisá-lo de que o jantar estava à mesa.

César sentou-se e começou a comer. Andava enjoado da comida que Alice fazia. Queria comer pratos finos, elaborados. Mas sua esposa ainda não aprendera a cozinhá-los. Estava fazendo um curso de culinária, e teve de admitir que a torta que ela serviu por último estava deliciosa, tanto que repetiu. Mas Alice não comeu quase nada e nem tocou na sobremesa.

– O que foi? perguntou. – Não estás com fome?

– Não sei – respondeu ela, olhando com certa repulsa para a mesa farta. – Parece que alguma coisa no almoço não me caiu bem...

“Provavelmente, ela já tomou o suco, e o veneno já está começando a fazer efeito”, pensou ele.

– Desde que horas que estás te sentindo mal?

– Não sei... Mas acho que desde que eu voltei da Igreja...

– Vai ver que foi o Sangue de Cristo que não te sentou – provocou ele.

– Que horror, César! Não digas uma blasfêmia dessas.

Levantou-se, devagar.

– Aonde vais? perguntou ele.

– Vou me deitar um pouco. Pode ser que passe.

Alice caminhou lentamente para o quarto. César viu quando ela entrou e fechou a porta. Dirigiu-se para seu escritório, que ficava no outro extremo do espaçoso apartamento. Entrou e trancou-se, satisfeito por haver mandado isolar acusticamente a peça e instalar uma porta a prova de som. Não queria ser incomodado pelos eventuais gemidos de sua esposa agonizante.

Olhou com displicência para os processos sobre a escrivaninha. Aproximou-se do aparador e serviu-se de um copo de uísque. Sentou-se no confortável sofá de veludo e começou a beber.

De repente, ouviu uma voz dizer atrás de si:

– Dizem que, quem bebe sozinho, bebe com o diabo.

Levantou-se, sobressaltado, e voltou-se na direção da voz. O estranho com quem se havia encontrado no bar, há mais ou menos dois meses, o encarava com um ar cínico.

– O senhor? murmurou, trêmulo. – O que está fazendo aqui?

O homem fez a volta no sofá e sentou-se, cruzando as pernas.

– Vim visitá-lo, Sr. César. Aliás, acho que agora devo dizer Doutor César.

– Com certeza – respondeu o jovem, arrogante. – Mas quem lhe deu permissão para entrar aqui, e como conseguiu?

O sujeito deu uma risada.

– Parece que sua velha avó estava certa, Dr. César. A chave que me abriu as portas de seu apartamento é essa que o senhor tem nas suas mãos.

César olhou com certa repulsa para o copo de uísque e largou-o rapidamente sobre a escrivaninha.

– Bem, se o senhor veio me ver, já me viu. Agora, peço que me dê licença...

– Calma, Dr. César. Eu acabei de chegar. O senhor nem me deu tempo de perguntar-lhe como se sente.

César ia responder que estava bem, mas, subitamente, sentiu uma tontura.

– Não precisa falar, Dr. César. Eu sei como o senhor se sente. Sei que está sentindo um mal-estar, uma náusea, uma vertigem, uma falta de ar. Acho melhor que o senhor se sente, Dr. César.

César obedeceu, cada vez mais pálido.

– O que está acontecendo? perguntou, num fio de voz. – O senhor me prometeu que eu nunca ficaria doente.

– O que o senhor está sentindo não se deve a qualquer espécie de doença, Dr. César.

– Então...?

O homem levantou-se e aproximou-se do jovem. César encolheu-se, ao mesmo tempo em que o outro parecia crescer por cima dele.

– O senhor foi envenenado, Dr. César.

César arregalou os olhos e estremeceu.

– Mas... Como...? Quem...?

– Estava deliciosa aquela torta que o senhor comeu na sobremesa do jantar, não estava, Dr. César? perguntou o sujeito, com malícia. – Não sentiu um ligeiro gostinho ácido, provavelmente de limão?...

César levantou-se, aterrorizado, e imediatamente sentiu um aperto no peito. Caiu de joelhos e escorregou para o chão, sentindo-se cada vez mais sufocado.

– Sua esposa usou o suco de limão que o senhor envenenou para fazer a torta, Dr. César. Ela não comeu nem um pedaço. Mas o senhor comeu bastante. Devo dizer que cometeu o pecado da gula, Dr. César. Se não tivesse repetido a sobremesa, a dose que o senhor ingeriu não teria sido letal. Mas...

– Socorro! gritou César.

Mas o escritório era a prova de som...

– Eu... Eu invoco... a exceptio... non adimpleti... contractus – disse César, ofegante, sentindo o ar fugir de seus pulmões, como que para não voltar, a cada palavra que dizia.

– Lamento muito, Dr. César. Mas eu cumpri integralmente a minha parte no contrato.

– Como... se eu estou... envenenado...?

– Ora, Dr. César, eu havia prometido protegê-lo de qualquer ataque que viesse de seus inimigos. Mas não havia prometido protegê-lo do senhor mesmo, Dr. César. Foi o senhor mesmo quem colocou veneno no suco de limão. E foi o senhor mesmo quem comeu dois pedaços da torta, Dr. César...

César ainda o olhou, com terror, antes de mergulhar na escuridão. O sujeito levantou-se e sacudiu a cabeça, com desdém.

– Eles sempre deixam um furo na hora de elaborar o contrato – murmurou.

No meio da noite, Alice deu pela falta do marido e bateu na porta do escritório. Como não houvesse resposta, por mais que ela insistisse, arrombou-a. Encontrou-o caído e imediatamente chamou a ambulância, mas quando o levaram para o hospital, já há muito tempo não restava mais o que fazer. Todos se surpreenderam com o que havia acontecido – todos, inclusive o médico que fora subornado por César para diagnosticar um enfarte como a causa mortis de sua esposa, o qual percebeu que alguma coisa no plano dele havia saído errado, mas achou por bem cumprir com sua parte no trato: já que fora pago para diagnosticar uma morte por enfarte, diagnosticou uma morte por enfarte, antes que a polícia desconfiasse que estivera metido numa tentativa de envenenamento...

Depois do velório, Alice chegou em casa, amparada por algumas de suas amigas da Igreja, e, na falta de outra coisa, quis oferecer-lhes um pedaço de torta de limão. Mas, estranhamente, a torta havia mofado, e ela teve de jogá-la fora. E nenhuma daquelas mulheres piedosas teve a oportunidade de provar a guloseima que tanto havia agradado a seu marido na véspera...

MAIO DE 2007

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Nota: esta é uma obra de ficção, que não retrata necessariamente minhas crenças, idéias ou opiniões; qualquer semelhança com fatos ou pessoas reais terá sido mera coincidência.

FIM